“The Force Awakens”: O Novo Artigo 12.º-A do Código do Trabalho

SUMÁRIO: 1. A Reforma de 2023: Contexto, Alterações e Impactos. 2. O Funcionamento da Presunção no Novo Art. 12.º-A do Código do Trabalho. 3. A Recente Decisão do Tribunal do Trabalho de Lisboa. 3.1. Enquadramento Fáctico. 4. Breves Notas à Decisão e ao seu Impacto na Era Digital.

RESUMO: Este breve texto analisa a nova questão relativa ao reconhecimento de contratos no âmbito de uma economia digital em evolução, centrando-se na dinâmica única entre a Uber e os seus “estafetas”. Com a introdução das alterações, em 2023, ao Código do Trabalho e a sua inovadora presunção de trabalho plasmada no art. 12.º-A, este estudo examina as implicações e desafios legais que foram apresentados perante o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa.

 

  1. A Reforma de 2023: Contexto, Alterações e Impactos

No passado dia 3 de abril de 2023 entrou em vigor a Lei n.º 13/2023, que implementou um vasto conjunto de medidas e alterações à legislação laboral (ex., Lei n.º 105/2009, de 14 de setembro, e Decreto-Lei n.º 66/2011, de 1 de junho), em particular ao Código do Trabalho (doravante, “CT”), no seio da Agenda do Trabalho Digno e de Valorização dos Jovens no Mercado de Trabalho. Esta, publicada e regulada através do Decreto-Lei n.º 53/2023, de 3 de junho, e aprovada pela Lei n.º 13/2023, de 3 de abril, transpõe para a legislação portuguesa as Diretivas n.º 2019/1152 e n.º 2019/1158, do Parlamento Europeu e do Conselho. As alterações introduzidas pela Lei n.º 13/2023 constituem a 23.ª alteração ao CT e, também, uma das reformas mais profundas e significativas quanto à legislação laboral.

Extravasando o escopo do presente texto analisar com detalhe as diversas alterações, passaremos apenas a abordar aquela com maior relevo para o tema que aqui se visa discutir: as plataformas digitais.

As plataformas digitais entendem-se como uma pessoa coletiva que presta ou disponibiliza serviços à distância, através de meios eletrónicos, nomeadamente sítio da internet ou aplicação informática, a pedido de utilizadores e que envolvam, como componente necessária e essencial, a organização de trabalho prestado por indivíduos a troco de pagamento, independentemente desse trabalho ser prestado em linha ou numa localização determinada, sob termos e condições de um modelo de negócio e uma marca próprios, nos termos do art. 12.º-A, n.º 2, CT. Estas não podem estabelecer termos e condições de acesso à prestação de atividade, incluindo na gestão algorítmica, mais desfavoráveis ou de natureza discriminatória para os prestadores de atividade que estabeleçam uma relação direta com a plataforma, comparativamente com as regras e condições definidas para as pessoas singulares ou coletivas que atuem como intermediários da plataforma digital para disponibilizar os serviços através dos respetivos trabalhadores (art. 12.º-A, n.º 7, CT).

A plataforma digital(1) é a pessoa singular ou coletiva que atue como intermediário da plataforma digital para disponibilizar os serviços através dos respetivos trabalhadores, bem como os respetivos gerentes, administradores ou diretores, assim como as sociedades que com estas se encontrem em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo, são solidariamente responsáveis pelos créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação, celebrado entre o trabalhador e a pessoa singular ou coletiva que atue como intermediário da plataforma digital, pelos encargos sociais correspondentes e pelo pagamento de coima aplicada pela prática de contraordenação laboral relativos aos últimos três anos (art. 12.º-A, n.º 8, CT).

Neste âmbito, e com particular relevância para o presente escrito, releva mencionar, por agora, a nova presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital presente no art. 12.º-A, n.º 1, CT(2).

 

  1. O Funcionamento da Presunção no Novo Artigo 12.º-A do Código do Trabalho

Entre nós, as “presunções de laboralidade” ou “presunções de contrato de trabalho” não são novidade, visto que existia já no nosso ordenamento jurídico o art. 12.º, CT, introduzido pela Lei n.º 7/2009 e também alterado pela Reforma do Código do Trabalho surgida em 2023. Como já foi explanado, e sem grandes delongas sobre esta matéria, as plataformas digitais são uma ferramenta cada vez mais presente na atualidade, proliferam-se por toda a parte e, sendo o Direito do Trabalho um direito volátil, que sempre procura acompanhar, tratar e abranger o advento dos novos tempos, então não poderia deixar de ser consagrada uma nova solução legislativa: a presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital.

Esta presunção, consagrada no art. 12.º-A, CT, vem na esteira do Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho(3) e demarca-se da presunção de contrato de trabalho já contida no art. 12.º, CT, justamente por estreitar o seu âmbito de aplicação, restringindo-o à prestação de atividade para “plataformas digitais” e procurando, assim, tutelar com rigor e minúcia as situações que se passam neste tão peculiar mundo digital.

As presunções invertem o ónus da prova; isto é, desoneram o sujeito de fazer a prova do facto que invoca e, com isso, facilitam-na. As “presunções de laboralidade” viabilizam ao trabalhador interessado a atribuição do caráter laboral à relação que este mantém com o credor da sua atividade, que, no caso, são as plataformas digitais. Seguindo a regra geral das presunções, plasmada no art. 350.º, n.º 2, do Código Civil, esta é uma presunção iuris tantum, o que significa que pode ser afastada mediante a apresentação de prova em contrário(4). Isto mesmo decorre, desde logo, do art. 12.º-A, n.ºs 4 a 6, CT.

Ora, por força da aplicação das referidas presunções, passa a recair sobre o empregador um ónus da prova(5), tal como afirmou já o Tribunal da Relação do Porto: “A verificação de tal presunção transfere para o empregador o ónus de provar o contrário, ou seja, o ónus de provar que não se está perante um contrato de trabalho, prova esta que é mais exigente do que a mera contraprova, esta destinada apenas a lançar a dúvida sobre a realidade do que se pretendia provar.”(6).

Quanto ao art. 12.º-A, CT, este é um artigo extenso (vejam-se os seus doze números, fora as demais alíneas) e começa por fixar, logo no n.º 1, um elenco não taxativo de características que deve reunir a prestação de atividade, de modo a poder ser considerada uma prestação de trabalho (isto porque o artigo indica que devem reunir-se “algumas das (…) características”, o que nos leva a afirmar que devem reunir-se, pelo menos, duas das situações aí elencadas). Estas características prendem-se com os elementos que paradigmaticamente associamos a um contrato de trabalho: a retribuição (al. a)); o poder de direção e de controlo do empregador (als. b) e c)) e a consequente subordinação jurídica do trabalhador; a organização do tempo de trabalho (al. d)), que não é irrestritamente definida pelo trabalhador, como seria expectável numa relação jurídica não laboral; o poder disciplinar do empregador (al. e)); e a pertença dos instrumentos de trabalho à plataforma digital (al. f)).

No n.º 2, e como já mencionado, encontramos uma definição de plataforma digital, algo que é criticado por João Leal Amado. Segundo o autor, “[…] o legislador ensaia uma definição do que seja ‘plataforma digital’ […] Compreende-se o esforço, ainda que, como é sabido, definir seja incluir e excluir, o que pode revelar-se particularmente delicado e até perigoso quando estamos perante um fenómeno tão variado, complexo, dinâmico e mutável como é o das plataformas digitais.”(7). Importa aqui também salientar o n.º 12 do referido artigo, onde o legislador estabelece uma especificação a respeito das plataformas digitais.

No art. 12.º-A, n.º 3, o legislador reafirma uma máxima que também era já conhecida no Direito do Trabalho – a primazia da realidade sobre o nomen iuris – sendo que o que releva, para efeitos de delimitação e qualificação do contrato, é a forma como este é executado, não a forma como as partes o denominam ou qualificam(8).

No n.º 7 está plasmada uma proibição de discriminação e, no n.º 8, encontramos a consagração de responsabilidade solidária da plataforma digital e do intermediário, nos casos em que ele exista, o que configura uma solução louvável, para nós e também para João Leal Amado(9), visto que alerta as plataformas para a necessidade de um intermediário idóneo e solvável e, ao mesmo tempo, atribui mais segurança para o trabalhador no que aos pagamentos dos créditos laborais concerne.

No n.º 9 é percetível que, assim que operar a presunção constante no art. 12.º-A, os trabalhadores beneficiarão, e bem, de uma série de direitos que assistem aos demais trabalhadores que não exercem a sua atividade nas plataformas digitais, designadamente “[…] em matéria de acidentes de trabalho, cessação do contrato, proibição do despedimento sem justa causa, remuneração mínima, férias, limites do período normal de trabalho, igualdade e não discriminação”, mas desde que esses sejam compatíveis com a natureza da atividade desempenhada.

Finalmente, nos n.ºs 10 e 11 do artigo em análise fixam-se cominações para o empregador que atue de forma dissimulada, tentando atribuir ao contrato de trabalho uma roupagem que não lhe corresponde, de maneira a desonerar-se de uma série de deveres e encargos.

 

  1. A Recente Decisão do Tribunal do Trabalho de Lisboa

3.1 Enquadramento Fáctico(11)

O caso que aqui se expõe corresponde à sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo do Trabalho de Lisboa, de 1 de fevereiro de 2024, proc. n.º 29354/23.9T8LSB. Nesta, o Ministério Público (doravante, “MP”), autor, intenta uma ação declarativa de reconhecimento de existência de contrato de trabalho contra a Uber Eats Portugal – Unipessoal, Lda. (doravante, “Uber Eats”), ré (que, embora citada, não contesta). Nesta esteira, pede ao egrégio Tribunal que se declare a existência de um contrato de trabalho sem termo, com início a 1 de maio de 2023, entre Md Zaber Ahmed (o pretenso trabalhador, vulgo, estafeta) e a Uber Eats.

Ora, do ponto de vista factual o Tribunal começa por afirmar que a Uber Eats é uma sociedade que explora uma plataforma digital onde determinados estabelecimentos comerciais, nomeadamente restaurantes, fornecem os seus produtos. Assim, a plataforma supramencionada atua como intermediária, uma vez que conecta o vendedor (verbi gratia, restaurantes) ao consumidor. Mas, e como bem sublinhado pelo Tribunal, a Uber Eats não faz apenas esta ponte bilateral, mas sim uma ponte trilateral, ou seja, entre os estabelecimentos comerciais, os consumidores e os estafetas.

O acordo entre a Uber Eats e o estafeta não implica qualquer tipo de negociação prévia, pelo que tal contrato é apresentado em bloco. Note-se, ainda, que estes estafetas (que não estão obrigados a usar roupa distintiva da Uber Eats, nem a apresentar-se em conformidade com qualquer critério que não seja o pessoal), que recolhem os produtos nos estabelecimentos comerciais aderentes e os tranportam para, por exemplo, os domicílios dos clientes, não têm qualquer intervenção no negócio da empresa, nem qualquer poder decisório, nomeadamente, quanto aos critérios de gestão e ao modelo de organização do trabalho que desenvolve, limitando-se a executar a sua atividade nos termos que lhe são impostos, e que obriga ao uso de equipamentos de trabalho próprios, como sejam a mota/bicicleta, a mochila térmica e o telemóvel.

Ademais, a plataforma determina os procedimentos que o estafeta tem de seguir na recolha e entrega dos produtos, nomeadamente, como utilizar a aplicação Uber Eats, dando-lhe instruções sobre o momento em que deve introduzir a informação sobre a recolha/entrega que está a realizar. Não existe qualquer negociação prévia entre o prestador e a plataforma quanto aos critérios que estão subjacentes à definição dos valores e que são, nomeadamente, a distância percorrida e o tempo necessário para efetuar a entrega ao cliente – os horários de maior fluxo são mais bem pagos.

Quanto à retribuição, o Tribunal apurou que a Uber Eats fixa o valor dos montantes a pagar ao estafeta, mas este tem a liberdade de definir um valor mínimo por quilómetro que aceita para proceder à entrega de um pedido efetuado por um consumidor.

O Tribunal também afirma que, após análise do acordo entre a plataforma e o estafeta, aquela pode limitar temporariamente o acesso à aplicação por este, ou até desativar a conta definitivamente, por exemplo, por violação das regras de boas práticas da Uber Eats. Em adição, e nos termos do ponto 4.j do Contrato de Parceiro de Entregas do Parceiro de Frota, o estafeta reconhece que as suas informações de localização são obrigatoriamente fornecidas à Uber Eats, pelo que o estafeta, ao aceitar o contrato, aceita que as suas informações de localização possam ser obtidas pela Uber Eats enquanto a App está a ser utilizada e, paralelamente, que a sua localização aproximada seja exibida ao estabelecimento comerciais e ao consumidor antes e durante a prestação do serviço de transporte (assim, a atuação de Md Zaber Ahmed, é controlada pela Uber Eats em tempo real, através de GPS).

Por fim, o horário efetuado pelo estafeta, dentro do período de funcionamento da Uber Eats, depende da vontade daquele, não existindo qualquer condicionante quanto aos dias e aos períodos de tempo em que exerce a sua atividade. O Sr. Md Zaber Ahmed recebe como contrapartida da sua atividade um valor por cada pedido/entrega efetuada, não recebendo qualquer valor pelo tempo de espera entre a conclusão de uma entrega e a aceitação de novo pedido, e o pagamento a Md Zaber Ahmed é feito semanalmente, através de transferência bancária, sendo que a Uber Eats procede à emissão de faturas em nome deste.

 

3.2 Análise Jurídica do Tribunal

Tentando fazer jus à Recomendação n.º 198 da Organização Internacional do Trabalho e, nesse sentido, combater a dissimulação de contratos de trabalho, o Tribunal começou por afirmar que a Uber Eats, ré, se integra no conceito de plataforma digital constante do art. 12.º-A, n.º 2 do CT, pelo facto se dedicar “[…] à prestação de serviços de geração de potenciais clientes a pedido […]”, através da plataforma tecnológica Uber Eats, ao passo que Md Zaber Amed apenas atua “[…] conforme pedidos/tarefas que lhe são distribuídos através da (mencionada) plataforma […]”.

No que diz respeito à retribuição (art. 12.º-A, n.º 1, al. a)), elemento pressuposto por um contrato de trabalho nos termos do art. 11.º, CT, esta corresponde à taxa de entrega que é proposta na aplicação quando o estafeta aceita uma proposta de entrega. Ainda que o estafeta possa definir o valor mínimo que aceita receber por cada quilómetro percorrido na entrega, a realidade é que é a plataforma que, respeitando esse limiar mínimo, acaba por “[…] fixa[r], unilateralmente, o valor dos montantes a pagar-lhe ao estafeta pelas entregas que efetua […]”. O Tribunal julgou, portanto, que há aqui um pagamento “[…] regular (obedece a uma regra própria, um valor por cada pedido/entrega efetuada) e periódico (semanalmente, através de transferência bancária) […]”, o que nos permite advogar a existência de retribuição.

Quanto ao poder de direção (art. 12.º-A, n.º 1, al. b)), elemento também pressuposto por um contrato de trabalho nos termos do art. 11.º, CT, o Tribunal considera que a imposição ao estafeta da utilização de uma mochila térmica com determinadas dimensões, estado de limpeza e conservação e, bem assim, do procedimento de recolha e entrega, demonstra o poder detido pelo empregador para dar ordens e instruções, à semelhança do que sucede numa relação jurídica laboral.

Como este elenco não é taxativo, estes dois requisitos, de per si, bastariam para a aplicação da presunção, mas, ainda assim, o Tribunal procede a uma análise exaustiva do art. 12.º-A, CT.

No art. 12.º-A, n.º 1, al. c), CT, é abordado o poder de controlo e supervisão da atividade, que deve ser exercido pela plataforma digital. O Tribunal considera que este poder é evidente no caso sub judice, pelos seguintes motivos: “[…] o estafeta e o estabelecimento que prepara o pedido vão introduzindo dados na aplicação de modo a permitir a monitorização de cada recolha, transporte e entrega; os utilizadores clientes finais são convidados a dar feedback relativamente à forma como o estafeta realizou o seu trabalho, para além de que podem reportar problemas com os pedidos de entrega no caso de violações dos termos e condições. Além, do mais, a partir do momento em que o estafeta faz login na aplicação, a plataforma fica a saber qual é a sua localização, através de um sistema de geolocalização, sendo aquele indispensável ao exercício da atividade e à atribuição dos pedidos dos clientes […]”.

No que respeita ao requisito do art. 12.º-A, n.º 1, al. d), o Tribunal avoga que o facto de a plataforma “[…] não permit[ir] partilhar as credenciais associadas à conta, conforme estabelece o ponto 7 do referido ‘Contrato de Parceiro de Entregas do Parceiro de Frota’ […]” e, analogamente, o facto de o estafeta “[…] não pode[r] permitir que terceiros utilizem a sua conta, devendo manter os seus detalhes de login confidenciais a todo o tempo’ […]” é uma manifestação inequívoca da restrição da autonomia do estafeta.

Finalmente, no que concerne ao exercício de poderes laborais da plataforma sobre o trabalhador (art. 12.º-A, n.º 1, al. e)), atendendo a que “[…] a plataforma pode temporariamente restringir o acesso à aplicação, ou mesmo desativar a conta em definitivo, no caso de suspeita de violação das obrigações assumidas pelo estafeta, nomeadamente, por reclamação de segurança ou incumprimento de boas práticas […]”, então também podemos firmar a observância deste pressuposto.

Em face do supra explanado, percebemos que o único requisito que não se encontra reunido é o do art. 12.º-A, n.º 1, al. e), CT, algo que também não seria necessário, visto que se preenchem cinco factos em que assenta a presunção, o que é mais do que suficiente para que esta seja operante e para que possamos presumir que a relação entre o estafeta Md Zaber Amed e a plataforma Uber Eats é uma relação jurídica laboral, por se ter celebrado entre eles um autêntico contrato de trabalho.

 

Nestes termos julga-se a ação procedente e, em consequência, reconhece-se a existência de um contrato de trabalho, sem termo, entre Md Zaber Ahmed e a ré “Uber Eats Portugal Unipessoal, Lda.”, com início em 1 de maio de 2023

 

  1. Breves Notas à Decisão e ao seu Impacto na Era Digital

Cumpre-nos, chegados a este ponto, aplaudir a decisão proferida nesta sentença que, diga-se, trata o primeiro caso em que um Tribunal português se vê confrontado com o problema da qualificação da relação estabelecida entre as plataformas digitais e os respetivos prestadores de serviços no âmbito da nova “presunção de laboralidade” plasmada no art. 12.º-A, CT.

Não obstante ter sido a primeira decisão portuguesa na matéria, o entendimento seguido pelo Juízo de Trabalho de Lisboa foi ao encontro daquilo que já haviam decidido o Supremo Tribunal Espanhol(11) e o Supreme Court Britânico(12). No mais, veio-se a constatar aquilo que a própria realidade das coisas (que todos nós, de uma maneira ou de outra, já experienciámos) é incapaz de esconder: em muitos casos, as relações estabelecidas entre os estafetas e as plataformas digitais são verdadeiras relações de trabalho juridicamente subordinado(13).

No entanto, ultimamente alguns Jornais(14) têm apurado, junto da Uber Eats, que esta não foi citada para o processo, embora a decisão afirme perentoriamente que a ré foi citada, mas não contestou. Tem-se vindo a alegar que, na verdade, houve um erro quanto à morada da plataforma em causa e foi citada, por engano, a Glovo. Assumindo que tal é verdade, infelizmente uma decisão histórica como esta, que vinha construir os primeiros alicerces para erigir uma nova construção contratual laboral num mundo digital, pode ser anulada.

Ora, às citações em processo laboral, por força do art. 23.º do Código de Processo do Trabalho (doravante, “CPT”), aplicam-se as regras estabelecidas no Código de Processo Civil (doravante, “CPC”), com as especialidades constantes do CPT (arts. 24.º-25.º, CPT)(15). Assim, e nos termos do art. 187.º, al. a), CPC, verifica-se a nulidade por falta de citação, com a consequente anulação de todo o processado posterior à petição inicial(16).

A decisão do Tribunal da Comarca em classificar os motoristas de entregas da Uber Eats como trabalhadores e não como contratantes independentes abriu um precedente importante na economia digital laboral portuguesa. A decisão baseou-se no facto de a Uber Eats ter um elevado grau de controlo sobre os seus motoristas de entregas, incluindo a fixação das suas taxas de entrega, o fornecimento de instruções de entrega, o acompanhamento do seu desempenho através de um sistema de classificação, e a monotorização geográfica do estafeta através de meios eletrónicos.

Consequentemente, o Tribunal decidiu que os motoristas deviam ser considerados trabalhadores por conta da plataforma Uber Eats, com os mesmos direitos e proteções ao abrigo da legislação laboral portuguesa que outros trabalhadores. Esta decisão tem implicações importantes para a economia digital, uma vez que sugere que empresas como a Uber Eats, a Deliveroo, a Glovo, a Bolt e outras poderão deixar de poder contratar prestadores independentes para evitar os custos e as responsabilidades inerentes à contratação de trabalhadores.

Posto isto, no decurso desta exposição pudemos perceber o grande impacto que o mundo digital e os avanços tecnológicos têm no mundo laboral e, por conseguinte, os esforços envidados pelo legislador português na construção de um Direito do Trabalho atual e apto a dar resposta às mais variadas questões que se levantam com a evolução da tecnologia. Nos dias que correm são incontáveis as diversas relações de trabalho que emergem e que se distanciam da tradicional relação de trabalho – a relação de trabalho que é prestada exclusivamente nas instalações do empregador, sob a sua supervisão, e com a utilização dos seus meios e equipamentos. Hoje assistimos a uma procura crescente do teletrabalho, proliferam-se nas nossas estradas os “TVDE”, os estafetas de “Uber Eats” ou da “Glovo” e tudo isso vai ao encontro da azáfama dos nossos dias e de uma busca crescente por este tipo de serviços por parte do cidadão comum.

Com estas novas realidades, eis também a inflação legislativa laboral, com mudanças constantes operadas no seio do Código do Trabalho e agora, e com grande relevo para este caso, a nova presunção de contrato de trabalho.

Não podemos deixar de notar o caráter inovador que reveste a matéria tratada neste ensaio: por um lado, contamos com uma nova “presunção de laboralidade” que tem a vocação de eliminar precariedades e, simultaneamente, tutelar relações laborais estáveis e sãs; por outro, observamos uma decisão jurisprudencial nunca antes conhecida, mas composta por uma assinável análise factual e jurídica.

Nesta sentença encontramos um tratamento exaustivo da matéria de facto e o seu ulterior relacionamento com a legislação laboral (mormente a nova “presunção de laboralidade”), num esforço claro e sentido do Tribunal de não regurgitar dúvidas acerca daquela que deve ser a posição jurídica do trabalhador que coloca a sua energia à disposição da plataforma digital (um trabalho que é, de per si, frágil e facilmente dissimulado ou manipulado).

(1) “Atualmente há uma app para tudo ou quase tudo, desde atividades mais simples, como entrega de alimentação, até atividades mais complexas, como prestação de serviços jurídicos, surgindo todos os dias novas plataformas digitais. Na verdade, em teoria, qualquer atividade pode ser transformada plataformizada”; “Mesmo perante esta dificuldade, dados do Conselho Europeu demonstram que em 2022 existiam cerca de 28,3 milhões de pessoas a trabalharem nas plataformas digitais e que se espera que sejam cerca de 43 milhões em 2025. Em Portugal convém referir que não há certezas quanto ao número de TVDE’S ou estafetas mas uma das maiores plataformas deste tipo a operar em Portugal – a Bolt – referiu que tinha mais de 20 mil ‘motoristas’ e cerca de 9 mil estafetas”, Moreira, Teresa Coelho; Gonçalves, Marco (2023). Presunção de Contrato de Trabalho no Âmbito de Plataforma Digital: alguns Aspetos Materiais e Processuais. In Revista do Ministério Público, ano 44, n.º 175, julho/setembro, pp. 381 e 383, respetivamente.

(2) “Com o grande avanço tecnológico que se fez sentir nas últimas décadas, o mundo do trabalho começou a mudar a um ritmo cada vez mais intenso. As transformações dos últimos tempos são tão grandes que muitos já defendem que estamos perante uma ‘Quarta Revolução Industrial’. A contínua modernização dos modelos utilizados nas indústrias e a introdução de novas tecnologias reduziram a empresa do século XXI ao mínimo essencial. Na sociedade laboral atual procura-se um trabalho mais especializado, qualificado e flexível, o que levou a que trabalhadores aparentemente autónomos prestem os seus serviços diretamente ao consumidor final, o cliente. É neste contexto que surgiram novas formas de trabalhar, multiplicando-se as empresas que seguem um modelo empresarial que se pode enquadrar na economia colaborativa, na on-demand economy ou na indústria 4.0, i.e., segundo a Comissão Europeia, ‘modelos empresariais no âmbito dos quais as atividades são facilitadas por plataformas em linha que criam um mercado aberto para a utilização temporária de bens ou serviços, muitas vezes prestados por particulares’. Recorre-se a plataformas online, com capacidade de resposta quase imediata para dar resposta aos consumidores em tempo recorde”, Machado, Cátia (2022). Trabalho em Plataformas Digitais: A Qualificação do Vínculo Contratual. (Dissertação de Mestrado). Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, p. 12.

(3) Vide p. 62 do referido documento, disponível aqui: “Criar uma presunção de laboralidade adaptada ao trabalho nas plataformas digitais, para tornar mais clara e efetiva a distinção entre trabalhador por conta de outrem e trabalhador por conta própria, sublinhando que a circunstância de o prestador de serviço utilizar instrumentos de trabalho próprios, bem como o facto de estar dispensado de cumprir deveres de assiduidade, pontualidade e não concorrência, não é incompatível com a existência de uma relação de trabalho dependente entre o prestador e a plataforma digital”.

(4) Ou, como afirma Baptista Machado, “[…] cedem perante a prova do contrário, isto é, a prova de que o facto presumido não acompanhou o facto que serve de base à presunção legal […]”, Machado, Baptista (2019). Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador. (1.ª Edição, 26.ª Reimpressão). Almedina, p. 112.

(5) Moreira, Teresa Coelho; Gonçalves, Marco (2023). Presunção de Contrato de Trabalho no Âmbito de Plataforma Digital: alguns Aspetos Materiais e Processuais. In Revista do Ministério Público, ano 44, n.º 175, julho/setembro, p. 390.

(6) Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14/12/2017, proc. 1694/16.0T8VLG.P1, relator Paula Leal de Carvalho.

(7) Amado, João Leal (2023). As Plataformas Digitais e o Novo Art. 12-A do Código do Trabalho Português: Empreendendo ou Trabalhando?. In “Revista TST, Porto Alegre”, vol. 89, n.º 2, abril/junho 2023, p. 307.

(8) “O nomen juris atribuído ao contrato e as suas cláusulas constituem elementos relevantes para ajuizar da vontade das partes no que toca ao regime jurídico que elegeram para regular a relação contratual, se essa designação e essas cláusulas estiverem em correspondência com a realidade, ou seja, com aquilo que, de facto, aconteceu na vigência da relação”, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 03/12/2014, proc. 2923/10.0TTLSB.L1-4, relator Ferreira Marques.

(9) Amado, João Leal (2023). As Plataformas Digitais e o Novo Art. 12-A do Código do Trabalho Português: Empreendendo ou Trabalhando?. In “Revista TST, Porto Alegre”, vol. 89, n.º 2, abril/junho 2023, p. 309.

(10) O presente enquadramento é elaborado com base na própria descrição efetuada pelo Tribunal.

(11) “Na Espanha, o Tribunal Supremo proferiu uma decisão especialmente importante a este respeito, versando sobre o estatuto de um rider/estafeta da Glovo. Uma sentença paradigmática, proferida em 25 de setembro de 2020, do Tribunal Supremo, Sala Cuarta, de lo Social, Sentencia 805/2020, no Rec. 4746/2019. Esta decisão configura, ademais, um acórdão de unificação da doutrina e, por isso, cremos que se justifica divulgá-la. Ora, o Supremo Tribunal espanhol reconheceu a existência, in casu, de uma relação de emprego, de uma relação de trabalho dependente e subordinado, entre o rider e a Glovo”, Amado, João Leal (2023). As Plataformas Digitais e o Novo Art. 12-A do Código do Trabalho Português: Empreendendo ou Trabalhando?. In “Revista TST, Porto Alegre”, vol. 89, n.º 2, abril/junho 2023, pp. 297-298.

(12) “Mais recentemente ainda, a 19 de fevereiro de 2021, o Supreme Court do Reino Unido proferiu uma importante decisão, no processo Uber BV and others (Appellants) v Aslam and others (Respondents), na qual, uma vez mais, os tribunais britânicos rejeitaram a tese de que os motoristas da Uber devam ser tidos como microempresários ou como self-employed independent contractors, classificando-os, antes, como autênticos workers da Uber. […] Em suma, os motoristas desenvolvem a sua atividade para a marca Uber, vale dizer, eles não são trabalhadores por conta própria ou pequenos empresários que contactem com o mercado, que laborem para uma clientela indeterminada, pelo contrário, os seus clientes são pessoas indicadas pela Uber – os motoristas fornecem, afinal, a mão de obra de que a Uber necessita para explorar o seu próprio negócio”, idem, p. 301.

(13) “Na sequência da entrada em vigor dessas regras, a ACT identificou, entre Junho e Dezembro, 2609 prestadores de actividade para 16 plataformas digitais. Neste âmbito, foram feitas 1133 notificações e 861 participações ao Ministério Público para reconhecimento de existência de contrato de trabalho. A sentença agora conhecida é o resultado de uma dessas acções”, Ordem dos Advogados, Comunicação, 4 de fevereiro de 2024, https://portal.oa.pt/comunicacao/imprensa/2024/2/4/tribunal-do-trabalho-de-lisboa-reconhece-contrato-de-estafeta-com-a-uber-eats/.

(14) Notícia apresentada pelo  Jornal de Negócios, Catarina Pereira, 7 de fevereiro de 2024: https://www.jornaldenegocios.pt/economia/emprego/lei-laboral/detalhe/notificacao-do-tribunal-que-era-para-a-uber-foi-parar-a-glovo.

Notícia apresentada pelo ECO, Isabel Patrício, 8 de fevereiro de 2024: https://www.jornaldenegocios.pt/economia/emprego/lei-laboral/detalhe/notificacao-do-tribunal-que-era-para-a-uber-foi-parar-a-glovo.

Notícia apresentada pelo Jornal de Notícias, Augusto Correia, 8 de fevereiro de 2024: https://www.jn.pt/6474188749/decisao-historica-a-favor-de-estafeta-em-risco-notificacao-a-uber-foi-para-a-glovo/.

(15) Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19/12/2023, proc. 5969/22.1T8GMR-A.G1, relator Antero Veiga.

(16) Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12/01/2024, proc. 743/23.0T8CBR-A.C1, relator Paula Maria Roberto.

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Como a Maria Inês descreve o Tomás:

O Tomás é um excelente aluno e colega, mostrando-se sempre disponível e tentando envolver os outros nos vários projetos em que se encontra. O Tomás é também uma pessoa ativa, integrando diversos núcleos de estudantes e tendo inúmeros textos publicados, o que revela uma enorme competência ao nível de gestão de tempo e pensamento crítico.
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Como o Tomás descreve a Maria Inês:

A Inês, para além de ser a melhor grelhadora de bifes do Norte e arredores, é uma pessoa completa e rica curricularmente, visto que não se foca apenas nos estudos, onde tem um desempenho exímio, mas também em diversas e variadas atividades extracurriculares que a tornam em uma excelente aluna e pessoa. Apesar de, infelizmente, ter o seu coração dividido entre as terras áridas do direito do trabalho e as terras prósperas do direito da família e das sucessões, a verdade é que em qualquer projeto que se envolva dá 100% de si e eu, pessoalmente, sinto-me sempre seguro quando trabalho em conjunto com ela, visto que a sua parte estará sempre impecável.

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